CONTRA O INFANTIL (ou Quadrinhos são para crianças?)

 12 de outubro de 2024. Vim escrever a newsletter da semana justo no dia das crianças, e nela irei falar mal de crianças (se prepare você que gosta de crianças).


Ta bom, podem se acalmar, não é das crianças que irei falar mal, mas sim da ideia de que quadrinhos são para crianças.

Em primeiro lugar, nesse texto vou falar sobre quadrinhos, mas considerem os mesmos pontos válidos para livros ilustrados, animações e outros meios popularmente ditos “para crianças”.

Em segundo lugar, gostaria de ressaltar a importância fundamental da leitura e consumo de arte para crianças. Quadrinhos ajudam muito no aprendizado e adesão da leitura. Eu mesmo comecei a ler com livros ilustrados e continuei com quadrinhos, mesmo viciado em televisão. Por isso hoje em dia, com as criança tudo viciadas em telas que estão por todos os lugares, é mais importante do que nunca utilizar quadrinhos e iniciar as crianças na leitura. Sei que a paciência é difícil, e que é muito mais fácil deixar os pirráia na frente de uma tela e tentar ter paz. Mas isso não faz bem nem pra eles, nem pra você. Tentem deixar isso de lado um pouco e ler mais para crianças, com as crianças, dentre outras atividades analógicas que estimulem a criatividade.


Tirinha de Raquel S. Ramos.




Dito isto QUADRINHO NÃO É ALGO PRA CRIANÇA!!!! Não só.

Se você é dos quadrinhos (ou das animações), já deve ter se incomodado com isso. Mas é algo que me incomoda mais do que o normal, a ideia de que quadrinhos são para crianças. Por sorte, quando alguém me fala algo assim, consigo fingir que não estou pocesso e explicar com toda calma do mundo o que irei explicar agora (e que você talvez já saiba):

Assim como filmes com atores (live actions) e livros no geral, que contém diversos gêneros e obras para diversas faixas etárias, quadrinhos e animações também são assim. Todo mundo acha normal existir livros e filmes para crianças e adultos, mas ainda estranham quando se fala de alguma obra animada ou quadrinizada que não são direcioandas para crianças.

“Ah mas hoje em dia não é mais assim”, você pode pensar. O quadrinho nacional por exemplo, tem tido uma crescente absurda nos últimos anos, chegando em cada vez mais gente, alcançando lugares, ganhando prêmios, e evidenciando obras adultas. Isso ainda é um nicho do nicho do nicho do nicho muito nicho. E se você não acredita, é por estar inserido nessa bolha. Trarei aqui alguns exemplos que mostram que a ideia de que quadrinho é coisa de criança, ainda é muito popular para o público em geral HOJE EM DIA:

  1. Em 2019, o prefeito do RJ mandou recolher um quadrinho dos Vingadores da Bienal do Livro, alegando “conteúdo sexual para menores”. Era apenas um beijo gay.
  2. Em 2024, vereadores abriram denuncias contra a FIQ-BH, por conter quadrinhos que não são para crianças.
  3. Ainda esse ano, o artista Guilherme Infante teve sua participação na Feira Literária de Alfenas (FliAlfenas) cancelada, por ter uma personagem chamado Capirotinho.
  4. Recentemente participei de algumas oficinas de quadrinhos em universidades. E a maioria esmagadora dos participantes são professores que não tem contato com quadrinhos, querendo conhecer para trabalharem em sala de aula com crianças e jovens.
  5. Sempre que participo de feiras em locais abertos, com acesso a público que não é de quadrinhos, aparece alguém perguntando se tem coisas para criança.
  6. No início desse ano, estava lendo um quadrinho (graphic novel) da Power Paola no trabalho. Minha colega recepcionista, da mesma idade que eu (quase 30), ficou chocada ao descobrir que existem quadrinhos que parecem livros (formato códice brochura), são feitos para adultos e são do gênero drama. Ela estava tentando começar a ler livros, e se esforçando muito, quando talvez fosse mais fácil começar com quadrinhos. MAS ELA NÃO SABIA DISSO.
  7. Já que eu quero que esse tema também sirva para animações, também trago um exemplo dessa mídia. Em 2017, vários pais acionaram o PROCON, que mutaram o canal HBO por exibir a animação adulta Festa da Salsicha, sem avisar que não era para menores. Sendo que no começo de todo programa exibido, tem a classificação indicativa, porém ignoraram por se tratar de uma animação.


Em resposta a essa galera, deixo aqui a bio do cineasta Guillermo del Toro nas redes sociais:


A tradução correta seria “é uma mídia”.


Tá, mas porque que isso acontece?

Eu não faço ideia. Fim da newsletter.

Brincadeira. Algumas hipóteses podem ser levantadas.

Público: Diferente de países como França, Bélgica e Japão, onde o mercado de quadrinhos é fomentado para todos os públicos, no Brasil o mercado sempre foi direcioando para crianças e adolescentes. Mesmo tendo a publicação de graphic novels não infantis aqui desde o século XX, essas eram destinadas ao público jovem. E ainda com a onda de quadrinhos de cantores e apresentadores, como Gugu e Xuxa, que já tinham conteúdo pra criança, os famosos que não produziram conteúdo para criança, quando lançaram quadrinhos, foram para crianças, como Faustão, Ana Maria Braga, Leandro e Leonardo, entre outros. A questão de formato e venda também menospresava a mídia como algo menor. Quadrinhos eram apenas vendidos em bancas de revistas durante muitas décadas. Demorou até surgirem lojas especializadas (final dos anos 2000), e mais ainda para livrarias grandes incluirem áreas de quadrinhos junto a áreas de livros, e não na área de revistas. O brasileiro cresceu com esse menosprezo e direcionamento.

Cinema e TV: Durante muito tempo, as produções audiovisuais braseadas em quadrinhos, que se divulgavam dessa forma (existem produções mais sérias baseadas em HQs que não se divulgam em cima disso) ou eram de Super-Heróis, ou de personagens infantis. Mesmo hoje existindo filmes de Super-Heróis mais sérios, o seguimento já ficou marcado pela ação e aventura que atrai majoritariamente um público jovem, ainda que a maioria dos fãs sejam adultos.

Acesso: Como já foi comentado, ter acesso a quadrinhos no Brasil era exclusivo de sebos e bancas, antes de chegar em livrarias, com muitas limitações editoriais. Mesmo nessa época, limitações orçamentárias por parte de público já eram um problema. Muito se reclama dos preços hoje, mas nos anos 90 e 2000, eu cresci sem ter acesso a quadrinhos por ser muito pobre e morar em Recife. Tinha um álbum de figurinha aqui e ali, mas gibi mesmo, vim ter acesso em sebos já nos anos 2010. Mas ao mesmo tempo que os quadrinhos foram ganhando espaço em livrarias e crescendo o número de graphic novels publicados, os valores só foram subindo e subindo exorbitantemente. Não cabe aqui encontrar culpados para os valores, isso fica pra outro papo, mas isso dificulta o acesso até de quem gosta de quadrinhos (me incluo novamente). Me diga como que eu vou iniciar alguém no mundo dos quadrinhos, se um mero mangá já está indo de 30 para 50 reais? Se os quadrinhos ditos “obrigatórios” pelos influenciadores, estão indo de 80 para 100 reais? Se existem quadrinhos de 200 e 500 reais????? Bem, isso também é uma discussão para outro texto. O que eu falei dos preços, vale para livros no geral também, então com esse material tão inacessível, não dá pra o público em geral saber que existem quadrinhos para todos os públicos. PORQUE ELES NÃO SABEM QUE TEM QUADRINHOS PRA NINGUÉM, NEM PRA CRIANÇA MAIS.




Tentando concluir, pois já estou me prolongando muito. Todos esses motivos contribuem para essa imagem cultural que os quadrinhos tem para o brasileiro médio. Não podemos culpá-los por achar que gibi é coisa de criança. Agora como mudar isso? Eu não faço ideia. E aqui encerro meu texto, inconclusivo e triste.

Feliz dia das crianças.



Por Magdiel em 12/10/2024



Magdiel é um artista de Recife, fundador do coletivo 137 Cultural, e colaborador de diversos outros projetos envolvendo arte e cultura independente. É mais conhecido por seus cartoons humorísticos publicados na internet, e pela difusão do movimento “arte tronxa”.
Magdiel desenha, escreve, edita, e faz coisas na internet desde 2010, embora faça arte desde que nasceu.


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